Por Tião Rocha
“Preservada a vida e a ética,
vale tudo para educar uma criança!”
Mas de onde eu tirei isso? Eu fui buscar a inspiração lá em Moçambique, onde trabalhamos durante muito anos, no início da década de 90. Era o período de pós-guerra civil e de reorganização do país. Boa parte da população vivia em campos de refugiados de guerra, à espera de voltar para suas terras de origem ou de novos lugares para se estabelecer seus lares e poder viver em paz. E nós trabalhávamos na formação de educadores de crianças e jovens que viviam nestes campos de refugiados.
Em Moçambique eu tive que aprender a fazer exames de fundo de olho. “Oftalmologia social”, se é que existe. Se não, acho que a inventamos. Eu percebi que lá em Moçambique – como mais tarde lá no Maranhão, ou lá no Vale de Jequitinhonha – eu precisava aprender e diferenciar o que era ser pobre do que era ser miserável.
Ser ou estar pobre é uma contingência,
mexe com as coisas que nos faltam;
ser ou estar miserável é um estado de espírito,
afeta o sentido da vida e a alma.
(Uma vez, ao descer de elevador do 10º andar até o térreo, depois de uma palestra minha, encontrei um empresário que me disse:
– “Eu gostei muito do que você falou e tal, mas eu vou descer, eu tenho uma urgência agora, dá para você contar tudo o que você faz no elevador? Logo que eu chegar lá embaixo, eu tenho que sair: o que você faz no Vale do Jequitinhonha, no Maranhão ou Moçambique”
Em menos de 1 minuto, respondi:
– “Eu tento transformar miserável em pobre.”
– “Como é que é isto”?
– “Não dá para explicar assim em 30 segundos, são mais 2 dias de conversa, topa?”, truquei.
– “Topo. Então vamos conversar”.
– “Mas não é em elevador, né?”)
Bom, mas o que é ser miserável? É você olhar para uma pessoa e perceber que ela sofre de uma doença, que não é dor física, é dor na alma. Quando o olhar é de peixe morto, é um sintoma de melancolia. Melancolia é a dor de alma. É a falta de sentido na vida, falta de significado, falta de futuro.
Em Moçambique, às vezes, eu passava o dia inteiro com os jovens os provocando:
– O que nós vamos fazer amanhã, gente?
Não era no futuro, não. Era no dia seguinte. E eu lembro um dia, depois de nós passarmos uma boa parte da tarde juntos, um jovem falou assim:
– Eu acho que amanhã nós podíamos roubar a casa do seu fulano de tal.”
– “Já temos um projeto”, eu respondi. Aliás, o único. E pensei com meus botões: tenho que arranjar um plano B urgente, senão amanhã vou virar ladrão.
Aqueles jovens eram como pedra de gelo: se derretiam todos os dias, se transformavam numa poça d’água e no outro dia evaporavam. Tornaram-se invisíveis para a sociedade, para o mundo, para si próprios! Eles sofriam de melancolia profunda, vivam num estado em permanente autodesprezo.
(Santo Agostinho nos ensinou que “nós, humanos, só temos um tempo: o presente! Muitos vivem no presente do passado (remoendo só o acontecido), outros tantos no presente do presente (mirando o próprio umbigo e a própria sombra) e outros tantos no presente do futuro (olhando para adiante, para o não feito ainda).
Os jovens moçambicanos só tinham o presente do presente, reduzido ao dia e ao agora. O desafio com eles era criar presente do futuro. Amanhãs possíveis, palpáveis, significativos.
(Anos mais tarde, em 2007, o jornalista Clóvis Rossi escreveu uma crônica da Folha de SP sobre o nosso trabalho com as crianças e jovens no Vale do Jequitinhonha: “Você está perdendo os meninos para o futuro! E eu lhe perguntei: Pode? Ele respondeu: Pode, não pode é perder os meninos para atraso”. Naqueles dias incorporei mais um desafio na minha vida de educador: “só quero perder os jovens para o futuro… um futuro alcançável, possível, melhor, generoso…e para todos”)
Não podemos é perder para o atraso!
Mas o que é criar estes futuros? Como é que se sai deste lugar de miserabilidade, desta zona cinzenta do autodesprezo?
Durante os quase 9 anos que trabalhamos em Moçambique na formação de educadores que viviam e trabalhavam nos campos de refugiados de guerra, tivemos, primeiro, que desaprender e desapegar de nossos conceitos acadêmicos embolorados e preconceitos de formação histórica; depois, passamos para a fase do reaprender os tempos, os ritmos, os saberes, os fazeres e os quereres das pessoas e comunidades onde elas viviam. E foi que começamos, de fato, a nos tornar educadores que aprendem.
Professor é aquele que ensina,
educador é aquele que aprende!
Imagina você chegar em Moçambique, que era o antepenúltimo país do mundo, segundo o IDH! Quer dizer, estava lá na “segunda divisão” há muito tempo, à beira da lanterna. Tudo o que eu havia testado e aprendido até então, em Moçambique não adiantava. Segundo os jovens moçambicanos, “a vida não tinha carril”. Carril significa atalho, caminho, trilho, vereda. Mas alguns jovens diziam carril como um tempero, uma pimenta para dar gosto ao viver.
As pessoas saiam de casa todos os dias, de manhã cedo, para arranjar o carril do dia, o tempero do dia, o que vai mantê-las vivas hoje, ou amanhã, se estiverem vivas ainda. Então a pessoa vai definhando, se tornando invisível. Era muito complicado, muito complicado.
Mas, por obra do Destino, eu fui parar num lugar chamado Namalima, lá na Nampula. Um lugar pobre que nem Jó. Mas, para minha surpresa, eu vi que ali não havia melancolia, havia brilho nos olhos das pessoas. Pobreza material tinha a dar com pau, mas tinha brilho nos olhos, ninguém era melancólico. E aí eu comecei a indagar:
– “O que aconteceu aqui?”
– “Ah, não aconteceu nada.”, respondiam as pessoas.
– “Ah, aconteceu, alguma coisa aconteceu.”, insistia. Depois de tanta insistência, alguns começaram a falar:
– “Sabe o que aconteceu? Eu acho que nós começamos a mudar depois da escola, depois que a escola apareceu…”
– “Opa, como é que é isso mesmo? Mas que escola, aquela lá? ”
– “É.”
Era uma escola de pau a pique, chão de terra batido, estacas de madeira, coberta de palha de palmeira, mais ou menos num espaço de três por quatro metros. Uma escolinha semelhante a quase todas as escolas nos campos de refugiados.
– O que esta escola tem de diferente das outras?, perguntava curioso e ansioso.
– “Essa escola foi construída pelo senhor Antônio Silva….”, confirmaram todos a quem perguntava. E acrescentavam:
– “É verdade… as coisas mudaram depois da escola pronta.”
– “Cadê o senhor Antônio Silva?”, eu perguntava, curioso.
Ninguém achava o senhor Antônio. Ele vivia nas savanas. Eu fiquei lá um mês zanzando para achar o senhor Antônio. Um dia eu tive a sorte grande de encontrá-lo:
– “Eu estava lhe procurando há meses, Seu Antônio, agora o senhor me conta: o que o senhor fez?”
– “Eu não fiz nada não.”
– “Ah, como não fez nada, me disseram que o senhor fez assim, o que o senhor fez mesmo?”
– “Não fiz nada. Só fiz a escola”
– “Eu vou ficar aqui o dia inteiro, enquanto o senhor não falar, eu não vou embora… pode falar, eu não estou com pressa.”
Aí ele foi me contar a história, em detalhes.
Quando eles voltaram da guerra, juntaram o povo todo e o régulo (chefe), que até já tinha morrido, falou:
– “Ô gente, o que nós estamos precisando aqui na nossa comunidade?”
– “Tudo, não tem nada.”, gritaram alguns.
– “Precisa de tudo é verdade. Mas não dá para fazer tudo de uma vez. Quem é que precisa mais, entre nós, quem precisa de mais coisas”
– “As crianças”, alguém falou.
– “Concordam?” questionou o régulo.
– “E o que vocês acham que as crianças precisam mais?”
– “Escola.”, disse alguém.
– “Vocês concordam então em fazer uma escola para crianças? Sim! Todo mundo está de acordo? Sim!
Então ele fez a pergunta (óbvia para os macuas): “Quem é que sabe construir escola?”
O senhor Antônio levantou a mão. “O senhor faz, Seu Antônio”. “Faço”! E dali ele foi embora, foi construir a escola. Não tinha mais nada para conversar. Resolvida a parada dele: foi para o meio do mato, caçou um bocado de madeira, pegou umas palhas palmeira, em uma semana ele construiu uma escola três por quatro. Obra pronta, ele foi lá na casa do chefe e falou assim:
– “A escola está pronta, chefe, pode começar.”
– “Ô senhor Antônio, muito obrigado, mas sabe qual é o problema? Nós não temos professor para ensinar.”
– “Então, por que vocês pediram para construir a escola?”
– “Porque a escola estando pronta, no dia que houver um professor, ele fica aqui”.
– “Não, está errado, tinha que ter o professor! A escola está pronta, pode arrumar o professor!”
– “Mas ninguém sabe ensinar.”
– “Então, por que vocês pediram para construir escola?”, começou um bate-boca.
– “Então eu quero receber, vocês vão me pagar pelo meu trabalho.”
– “Mas não foi combinado assim.”
– “Mas vocês também combinaram de arrumar o professor e não arranjaram.”
– “Então, o senhor pode ir de casa em casa e falar com as pessoas, se eles quiserem pagar o senhor o senhor está autorizado a receber.”
E ele foi, de cada em casa, na comunidade da Namalima, e com a seguinte pergunta (óbvia para os macuas):
– “O que o senhor sabe fazer?”
– “Ah, senhor Antônio, eu sei fazer machamba[1].” “Ótimo, vai ensinar na escola, uma semana, tá”.
– “E a senhora? ” Eu sei fazer capulana[2], Seu Antônio”. “Ótimo, vai ensinar na escola, uma semana tá”.
– “E a senhora? ”
– “Eu sei torrar castanha de caju.” “Ótimo, vai ensinar na escola, uma semana, tá”.
E assim ele cobrou de todos os adultos de Namalima. Durante uma semana eles iriam ensinar na escola o ofício ou aquilo que eles sabiam fazer, assim como Seu Antônio gastou uma semana para construir a escola. Todos concordaram com o preço, justo. E assim aconteceu.
– “E aí senhor Antônio, o que aconteceu”? perguntei.
– “Eu passo e vejo lá sempre tem gente, todos os dias”, respondeu quase com displicência.
Um dia apareceu a professora para dar aula:
– “Sou a professora, vim dar aula”, com os livrinhos debaixo do braço.
E ouviu de volta:
– “A senhora pode voltar amanhã, à tarde, porque hoje não tem horário não…o horário está ocupado…”
Era mais uma pessoa para usar aquele o espaço, para ensinar e para aprender.
Essa escola nunca fechou as portas, nem sábado, nem domingo, ela funcionava todos os dias.
– “Senhor Antônio, valeu a briga?”
– “Acho que valeu (deu uma risadinha), olha lá a quantidade de gente. O dia inteiro tem gente lá. É bom, né!”
– “E o que o senhor aprendeu disso, senhor Antônio?”
– “O que a gente pode aprender disso é que, “como diziam meus pais e avós: “é preciso toda uma aldeia para educar cada menino!”
Esta escola não parava, não fechava as portas, funcionava todos os dias.)
– “Senhor Antônio Silva, muito obrigado, agora eu posso ir embora. Eu quero levar isso para o meu país.”
Quero ser um “convocador de aldeia” para que não fique nenhuma criança sem aprender, nenhuma para trás, nenhuma a menos.
“Para educar uma criança,
é preciso de toda a aldeia”
(provérbio macua)
(Namalima, Nampula, Moçambique)
Nós somos cuidadores e guardiões de morada (nossa mãe-e-irmã terra), não somos proprietários do mundo, no máximo inquilinos. E estamos de passagem e para quê? – para ser educados, livres, felizes e ter saúde, penso eu.
Ser educado é uma das razões da nossa vida, já que viemos ao mundo e temos pouco tempo aqui (não há segundo turno na vida, é turno corrido e ninguém cai para a segundona).
Por isso acredito que a educação é fim (e não meio) e o educador é aquele que cria as condições para as pessoas aprenderem tudo o que precisam para viver bem, o tempo todo. Educador é aquele que possibilita às pessoas a aprendizagem para a realização plena de todo potencial humano que trazemos e construímos. Então a educação deve preparar para que cada um seja um grande aprendiz com os outros, com o todo.
Podemos definir educação como quisermos, mas ela só acontece no plural. Não existe educação no singular, pois para que haja educação, são necessárias, no mínimo, duas pessoas. E educação não é aquilo que uma ou a outra pessoa sabem, mas o que elas conseguem trocar e aprender juntos. Educação é, portanto, uma soma (1 + 1 = 3), onde o que se aprende junto um com o outro, produz-se o milagre da educação.
Por isso, penso que a formação do educador deveria preparar o indivíduo para ser um aprendiz permanente, com uma capacidade de ouvir e de aprender de uma forma generosa e intensa. Quando a gente consegue despertar nas pessoas que todos nós temos esse potencial de educador, percebemos que é possível fazer isso em escala maior.
Vivi e aprendi em Moçambique que “para educar uma criança, é necessário toda uma aldeia”.
Ser Educador é tornar-se um “Convocador de Aldeia”, para que todos, sem exceção, possam aprender tudo o que precisam e desejam, no seu tempo e ritmo, para serem felizes, educados, livres e saudáveis. Então uma cidade deve ser sempre uma cidade educativa, uma grande aldeia. O importante é trabalhar esse potencial e disponibilizá-lo como possibilidade concreta para criar uma vida melhor para todos, em todos os lugares de nossa “casa e morada”, a Terra.
“Educação só acontece no plural.”
Educador é um “convocador de aldeia” para que todos se eduquem!
Tião Rocha
Educador.
Presidente do CPCD. Brasil
Fevereiro de 2020
[1] Machamba é roça ou horta, lá em Moçambique.
[2] Capulana é tecido de pano, em geral muito colorido e bonito, usado pelas mulheres para cobrir o corpo e a cabeça, em Moçambique.
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